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                    A DIFÍCIL PARTIDA - PARA CUBA 
                  28-09-1990 
                    
                  Muitos  brasileiros descobriram a rota de Cuba. As excursões são comparativamente mais  baratas do que dentro do nosso próprio país... Turismo modesto, com aparência  de luxo, ideal para a classe média. 
                    Existem voos charters e "pacotes" para todos os gostos.  
                    Minha viagem foi a convite, para participar do 45º Congresso e Assembléia da  Federação Internacional de Documentação - FID. Muitos colegas e amigos no  avião, a partir de São Paulo. 
                    De Brasília não partem voos internacionais. Para ir a Cuba deve-se, obrigatoriamente,  ir em direção ao leste/sudeste, a Rio e/ou São Paulo. O nosso Aeroporto  Internacional de Brasília é mesmo de província. 
                    Na escala em Caracas encontrei muitos outros conhecidos: venezuelanos, chilenos  e argentinos. 
                   
                  As  escalas no Aeroporto Simón Bolívar, em Maiquetía, são sempre demoradas. Muita  desorganização, maus serviços, guardas revistando malas morosamente e, não  raras vezes, muito calor, pois nem sempre o ar condicionado funciona... 
                    Atrasos frequentes nos voos, como desta vez, devido a uma "operación morrocoy"  (operação tartaruga) "organizada...." pelos controladores de voo, em greve  dissimulada, enfernizando a vida dos passageiros. 
                    Formavam-se imensas filas em frente ao balcão da Aeropostal, logo mandavam para  outro local, anunciavam embarque em um dos portões e em seguida íamos para o  lado oposto do imenso corredor, onde também não era... Mas não perdi o ânimo  nem o humor, alentado pelas conversas com amigos diletos que não via há tempo,  sobretudo meus "hermanos" de Venezuela... 
                   
                  LA  ISLA DE FIDEL 
                     
                    A chegada a Cuba impressiona pelo azul translúcido do mar represado entre ilhas  desertas e enormes bancos de areia.  
                    Ao contrário da Jamaica, que sobrevoamos inteira, onde os campos parecem  abandonados e improdutivos. Cuba é toda verde, cultivada, com fábricas,  autopistas, refletindo um uso extensivo de seu vasto território. (Não  necessariamente intensivo pois, ao que tudo indica, não conseguem arrancar da  terra o alimento suficiente para suas necessidades. 
                    Um calor úmido e pegajoso. No acanhado aeroporto, uma confusão de gente e  bagagens. Tudo simples, sem ostentação. 
   
                    Na camioneta com ar acondicionado, em direção ao hotel, aproveitaram para dar  informações básicas sobre o país, sobre os riscos de trocar dinheiro no  "paralelo", e para mostrar os prédios do caminho: hospitais, pequenas fábricas,  modestos edifícios residenciais. 
                    O bairro de Vedado, onde estava o hotel que a Academia de Ciências de Cuba  reservou para mim, os edifícios são os mesmos dos tempos anteriores à  Revolução, a 1959. 
                    Só que desleixados, mal cuidados, sem  pintura, em estado generalizado de abandono. Vedado foi, nos tempos áureos, um  florescente bairro de classe média, com casarões senhoriais, muitos deles  reduzidos à aparência de cortiços. 
                    Apesar de toda simpatia, causou-me tristeza ver tudo aquilo como que castigado  pois a Revolução logo preferiu construir "viviendas"  coletivas, símbolos da fase socialista. 
                    O longo embargo à ilha causou danos terríveis. Ou foi a política deliberada de  valorizar o novo e descuidar-se dos símbolos do passado, das desigualdades  sociais. 
   
                    As ruas cheias de gente e vazias de carros.  
                    No Hotel Vedado o atendimento era feito por senhoras gentís mas ineficientes,  bastante complicado ainda que cortês. Empregados por toda parte, controles em  excesso e pouca atenção real aos hóspedes. 
   
                    No restaurante era pior. Fila à porta, ainda que havendo lugares lá dentro. Uma  pessoa para levar à mesa, outra para distribuir os tickets, uma mesa de frios e  saladas, outra pessoa para atender no setor de pratos quentes, outra para  trazer as bebidas, outra para trazer a conta e outra no caixa. E a isso chamam  de "auto-serviço" (self-service")...  
                    Pra que simplificar se a gente pode complicar?! 
                    Isso tudo feito morosamente, com ares de eficiência... 
   
                    La Habana é belíssima, com relíquias extraordinárias do período colonial. E as  fortalezas à vista, por toda parte. Estão entre as maiores e mais belas da  América Espanhola. 
                    Palácios, casarões coloniais, edifícios imponentes do princípio do século, uma  mistura fascinante de estilos e de épocas. Além da magnífica Catedral colonial.  E, é óbvio, a Bodeguita del Medio, espécie de monumento vivo à memória de  Ernest Hemingway, o Prêmio Nobel que viveu e glorificou a Ilha em seus romances  e relatos. 
                    Os melhores edifícios já foram restaurados e neles estão museus, restaurantes,  lojas, galerias de arte, todas para o turismo. Preços em dólar, exclusivos para  estrangeiros. Cubano não entra. E se entra, não compra. Emitem notas fiscais  detalhadas, especificando "transação"... 
                   
                  As  ruelas são movimentadas mas, felizmente, nelas não entram carros. Lojas simples  em edifícios velhos e mal cuidados. Entrei em uma delas com o meu guia e quase  nada havia para vender sobre as bancas de madeira cobertas de papel rasgado.  Tudo escasso, feio e caro para os padrões consumistas estrangeiros. 
                    Na loja de discos o vendedor atendia no balcão e os poucos discos estavam fora  do alcance das mãos. O cliente devia contentar-se com ver algumas capas na  vitrine. 
                    A CONTRA CULTURA 
                    Meu "guia" era um estudante de medicina de 21 anos.  Tony, como todos os Antonios de Cuba. Não usa  "guayabera" [camisa de quatro bolsos, parecendo um pijama de luxo] e prefere  roupas jovens, elegantes: jeans de corte moderno, camisões frouxos, bem  compostos. 
                    Não tem o tipo cubano.  Alto, branco, com  uma vasta cabeleira bem cortada. Conheci-o no "malecón" de La Habana. Puxou  conversa: — Que disse esta guia? 
                    Expliquei que era um guia  turístico no Brasil. 
                  —  Dice mentiras, mentiras oficiales. 
                    Abriu o jogo: o socialismo é uma experiência sem saída, esgotada. O regime está  no fim. O povo não aguenta mais.  
                    Falou  do general que foi executado há pouco tempo atras. Certo: ele estava envolvido  no tráfico de cocaína, mas a serviço do governo. Não foi morto porque  corrompeu-se, mas porque pregava a economia de mercado e a abertura política.  
                    Contou-me o problema das filas, o  racionamento de combustível, de luz, as quotas mínimas para obter alimentos,  roupas. 
                    — Mas vocês têm moradia, saúde  publica - arguí. 
                    — Tenemos, pero no es suficiente. El Gobierno habla de logros, pero no  deja lugar para hablar de los fracasos. 
                      — Você estuda medicina, tem todos os  privilégios; a medicina cubana é avançada. 
                        —¿Y qué?! Después de graduado, que voy hacer? Trabajar para el  gobierno?  ¿Ganarme sueldo de  hambre? 
                          Tony  não gostava, definitivamente, do comunismo de Fidel. Queria poder ir-se do  país, mas disse que seria impossível conseguir os quinze mil dólares  necessários para o visto de saída. 
                            —? Se no puede uno vender ni llevar nada de lo suyo, cómo  salir de Cuba?! 
                            Ele quería poder ir a qualquer parte,  comprar roupas bonitas, viver a vida de um jovem de sua idade, suas fantasias. 
                  item  por item, à mão, inclusive os números de estoque acima do código de barra.  Depois o caixa rebate tudo no teclado do computador... Comprei uma simples  gilete descartável, mas a atendente preencheu uma enorme nota fiscal em três  vias carbonadas que, certamente, valiam mais que o suposto "lucro" da  transação... 
                   
                    Tentamos  jantar, mas as filas nos restaurantes eram desalentadoras. Poucos lugares para  ir, muita gente querendo... Gente verdadeiramente otimista, paciente. Nos  restaurantes melhores não pudemos entrar porque ele não usava camisa de manga  comprida. Fiquei revoltado: 
                    —Cómo é possível? Quer dizer que  na sociedade sem classes as pessoas estão divididas em duas categorias: com e  sem mangas compridas?! 
                    O porteiro nem ficou perturbado  com a agressão: 
          —Así es. 
                    Nos hotéis de luxo os turistas  podem entrar nos restaurantes com mangas curtas, como lhes aprouver. Sem 
                    restrições. Mas os cubanos não estão autorizados a ir lá, nem mesmo  acompanhados dos turistas, nem como convidados. Um verdadeiro apartheid. Tampouco  podem tomar os taxis dos turistas, que marcam em dólares. São orientados a não  manterem contatos com os estrangeiros, pelos comitês de defesa da Revolução  Cubana. O turismo é a grande indústria em ascensão, dele virão os dólares para  dar força à economia em tempos tão difíceis. Mas o turismo também traz o vício,  a corrupção, a luxúria, a ostentação, o mercado negro, a prostituição, a AIDS,  o contrabando, a contra-cultura. Como manter os estrangeiros isolados? O povo  cubano é, por natureza, hospitaleiro e comunicativo. 
                   
                    As  oportunidades de lazer e consumo abertas para os turistas aguçam a curiosidade,  a vontade, a inveja e a insatisfação, principalmente entre os jovens. 
                    Antigamente os únicos visitantes  eram os simpatizantes do regime. Agora é a classe média, atraída pelos hotéis e  passagens baratas. Além do "turismo de saúde" e do "turismo científico",  trazendo pessoas para tratamento médico e para congressos de especialistas pois  o "Palácio de las Convenciones" tem excelente infra-estrutura, inclusive bons  tradutores. 
                    Como manter duas culturas paralelas, uma coletivista e a outra individualista,  uma cooperativista e a outra comunista? 
                    Ao lado do Hotel Habana Libre, em pleno coração da cidade, reúnem-se os jovens  da nova geração. Rapazes e moças nascidos no regime socialista. Às centenas  eles vêm para o "footing" nas avenidas principais, para o namoro nas praças,  para as filas da mega sorveteria Coppelia e para tentar um dos disputadíssimos  lugares nas poucas dançarias de bares. 
   
                    O Governo projeta documentários e filmes nas paredes do "Habana Libre", em ação  cultural propagandística. Centenas de jovens encontram-se no prédio em frente.  À princípio pensei que fosse para ver os filmes, mas o público punha pouca  atenção nas projeções. Vestidos com jeans rotos, cabeleiras grandes, brincos,  abraçando-se, beijando-se, mostrando discos dos roqueiros e "metaleiros",  estavam mais para "punks"* do que para revolucionários. 
                    [*"Punks" refere-se tanto ao movimento musical e cultural  surgido na Grã-Bretanha nos anos 70 quanto aos seus adeptos, caracterizados  pela contestação social, atitude provocativa, música enérgica e um estilo de  vestuário e cabelo distinto, que se opõe aos valores e normas estabelecidos  pela sociedade.]  
   
                    Um tanto ao estilo dos "hippies" dos anos 1970.   Às centenas. Gente descontraída, despolitizada, excêntrica. Uns quantos  homossexuais assumidos (antes era tabú na sociedade "machista-leninista",  segundo expressão do próprio Tony). 
                   
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